31 dezembro 2018

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"Morde-me com o
querer-me que tens nos olhos
Despe-te em sonho ante
o sonhares-me vendo-te,
Dá-te vária, dá sonhos
de ti própria aos molhos
Ao teu pensar-me
querendo-te…
Desfolha sonhos teus de
dando-te variamente,
Ó perversa, sobre o
êxtase da atenção
Que tu em sonhos
dás-me…
E o teu sonho de mim é
quente
No teu olhar absorto ou
em abstracção…
Possue-me-te, seja eu
em ti meu spasmo e um rocio
De voluptuosos eus na
tua coroa de rainha…
Meu amor será o sair de
mim do teu ócio
E eu nunca serei teu, ó
apenas-minha?"


In Fernando Pessoa.

01 dezembro 2018

Poema para a Negra

Deixa que os outros cantem o teu corpo
que dizem feiticeiro e sedutor,
e, na volúpia vã do pitoresco,
entoem madrigais à tua dor.
Deixa que os outros cantem teus requebros
nos passos de massemba e quilapanga,
e teus olhos onde há noites de luar,
e teus beiços que têm sabor de manga.
Deixa que os outros cantem os teus usos
como aspectos formais da tua graça,
nessa conquista fácil do exotismo
que dizem descobrir na nossa raça.
Deixa que os outros cantem o teu corpo,
na captação atónita do viço
e fiquem sempre, toda a vida, a olhar
um muro de mistério e de feitiço...
Deixa que os outros cantem o teu corpo
- que eu canto do mais fundo do teu ser,
ó minha amada, eu canto a própria África,
que se fez carne e alma em ti, mulher!
Geraldo Bessa Victor


21 abril 2018

" EU"

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"